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“Tipificação Legal da Exploração das Máquinas de Caça-níqueis”

25/03/2002

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O Brasil inteiro foi inundado pelas máquinas eletrônicas programáveis denominadas“vídeo-bingos” ou “caça-níqueis”. No Estado de São Paulo não existe cidade, por menor que seja, que não disponha de máquinas deste tipo instaladas em bares, padarias e outras casas do gênero.
Se num primeiro momento parecem inofensivas, por trás estas máquinas escondem estreita ligação com a Máfia italiana e espanhola. Documentos encaminhados ao Ministério Público de São Paulo (GAECO – Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), provenientes da “DIA – Direção Investigativa Anti-Máfia”, da Polícia italiana, e da SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas, do Brasil, demonstram que dinheiro, inclusive do narcotráfico, estaria sendo “lavado e reciclado” em nosso país por intermédio de empresas relacionadas com a importação e a exploração das conhecidas máquinas de “vídeo-bingos” ou “caça-níqueis ”.
Portanto, o assunto merece especial atenção, pois a reação estatal a crimes gravíssimos passa pelo combate específico e cotidiano à exploração das máquinas “caça-níqueis”. E a questão que aqui se coloca é saber qual a conduta típica daqueles que exploram e mantém em seus bares ou similares aparelhos deste tipo.
A Lei nº9.615, de 23 de março de 1998, denominada “Lei Pelé”, que institui normas gerais sobre o desporto, prevê que os jogos de bingo são permitidos em todo o território nacional (art.59), cabendo às entidades desportivas o credenciamento junto à União para explorar tal jogo de forma permanente ou eventual, com a finalidade para angariar recursos para o fomento do desporto (art.60). Regulamentando esta lei, o Decreto nº3.659/00, dispõe que a exploração de jogos de bingo, serviço público da competência da União, será executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal, em todo o território nacional (art.1º).
Por outro lado, a “Lei Pelé” (Lei nº9.615/98) proibiu a instalação de qualquer tipo de máquinas de jogo de azar ou de diversões eletrônicas nas salas de bingo (art.73), bem como no âmbito penal, tutelou como crime a conduta de “manter nas salas de bingo máquinas de azar ou de diversões eletrônicas”, apenando-a com detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. A apuração deste crime é de competência da Justiça Federal, eis que praticado em detrimento de serviço da União, nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal.
O mesmo não se pode dizer, entretanto, se tal exploração ocorrer fora dos estabelecimentos destinados à exploração do bingo, vale dizer, em bares ou similares, pois ante a ausência de criação de figura típica neste sentido pela Lei nº9.615/98, a conduta deve ser enquadrada em outro instrumento de direito material.
Num primeiro momento, parece clara a conclusão de que esta conduta se enquadraria na descrição típica da contravenção penal de jogo de azar (artigo 50, § 3º, “a”, do Decreto-lei nº3.688/41). Aliás, era esta a tese defendida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e que vinha ganhando corpo nos Tribunais paulistas[1][1]. Todavia, a realização de um encontro de trabalho, patrocinado pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminal, entre Promotores de Justiça e peritos do Instituto de Criminalística de São Paulo, acabou por concluir que a melhor tipificação para a conduta de exploração de máquinas “caça-níqueis” fora dos estabelecimentos destinados à exploração do bingo encontra-se no artigo 2º, inciso IX, da Lei nº1.521, de 26 de dezembro de 1951.
Este trabalho, da lavra de eminentes peritos do Instituto de Criminalística de Bragança Paulista-SP, informa que todas as máquinas eletrônicas de jogo, desde a mais simples até as mais sofisticadas, são dotadas de “switches” (micro-chaves), do tipo “off-on” (ligado-desligado), através das quais se altera o comportamento das máquinas, de acordo com a vontade de quem a explora. Ou seja, através dos ajustes das “micro-chaves”, pode-se escolher a porcentagem de pagamento ao jogador ou até quanto o apostador vai poder ganhar com o jogo, de acordo com a vontade do explorador do jogo/proprietário da máquina.
Além disso, de acordo com os peritos, todas as máquinas “caça-níqueis” possuem “placa de circuito”, dotadas de memórias ou “memória RAM”, que seriam removíveis e substituíveis (recambiáveis), de maneira que o proprietário da máquina/explorador do jogo poderia facilmente trocá-las, alterando ao seu bel prazer o comportamento do jogo e por conseqüência a possibilidade de ganho para cada apostador/jogador. Esta programação poderia ser alterada tantas e quantas vezes ele assim desejar, bastando para isso adquirir novas “memórias/programas”.
Desta forma, vê-se claramente que na verdade mudam os métodos de engodo, sobretudo em face do enorme avanço da tecnologia, mas não muda o intuito de se obter o ganho ilícito. Se antigamente eram as “roletas viciadas” que, dando inicialmente aos jogadores a euforia de pequenos ganhos, levavam-no à ruína quando o discreto mas ladino “croupier” acionava, mecanicamente, o dispositivo ao pé da mesa de jogo, hoje, muito mais sofisticadamente, é o “chip” ou a “placa de memória” que substitui aquele mesmo truque, só que com muito menor risco de descoberta.
Ora, consoante dispõe o art.2º, inciso XI, da Lei nº1.521/51, constitui crime contra a economia popular a conduta de se obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos, elencando os comportamentos “bolas de neve”, “cadeias”, pichardismos”, apenas a título de exemplificação, mesmo porque se complementa tais comportamentos com outra expressão, de cunho genérico, “a quaisquer outros equivalentes”.
Como ensina a Doutrina:
“É, como se vê, uma modalidade do crime de estelionato, previsto no art.171, do Código Penal: – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
Este é praticado contra o indivíduo; aquele é cometido contra o povo ou indeterminado número de pessoas. O traço vivo de ambos é a burla, o ardil, ou manobra fraudulenta, armados a captar a credibilidade alheia. A atividade dos enliçadores e burlões pode assumir, em qualquer deles, variadíssimas formas fraudulentas. Não que não haja diferenças de características entre o estelionato e a burla contra a bolsa do povo. O primeiro admite a tentativa. Quanto a este, o simples tentar já é consumar: num, o dano deve ser sempre efetivo, concreto, ao passo que, no outro, pode ser apenas potencial ou de perigo, em uma das suas figuras. Obter ganhos ilícitos, em detrimento do povo é crime material em face do resultado danoso, enquanto tentar obter tais ganhos é delito simplesmente formal.”[2][2]
O simples jogo, como é sabido, é proibido em si mesmo, nas condições definidas pela Lei das Contravenções Penais. Com mais razão, o jogo viciado, que não se confunde com o jogo de azar previsto no art.50 do Decreto-lei nº3.688/41.
Assim, as máquinas “caça-níqueis”, na forma como concebido e ora demonstrado, é sem dúvida o sucedâneo moderno da “roleta viciada”, ou da “carta na manga”. Constitui, sem dúvida, a forma especial de estelionato contida na norma penal incriminadora ora em discussão, mesmo porque fundado na fraude, no dolo, na esperteza ilícita que não se confunde com a habilidade dos apostadores, ou mesmo com o blefe bem arquitetado.
Ademais, forçoso reconhecer que a sistemática de funcionamento das máquinas “caça-níqueis” é muito semelhante, senão igual, à das antigas máquinas de “vídeo-poker”, cuja jurisprudência[3][3] e Doutrina[4][4] remançosamente trataram de capitular como crime contra a economia popular. Como no “vídeo-poker”, também nas máquinas “caça-níqueis” o apostador, ao acionar a tecla de jogo, põe em ação o programa previamente estabelecido na “memória RAM” da máquina, cujo resultado independe de qualquer tipo de habilidade do jogador, mas, sim, da programação que foi inserida pelo fabricante, com limitadas possibilidades de ganho. Mais, também como no “vídeo-poker”, nas máquinas “caça-níqueis” há a possibilidade de alteração de dificuldades e da probabilidade de ganho com a máquina pelo proprietário/explorador do jogo, sem que o apostador tenha conhecimento destes fatores, através do acionamento de micro-chaves ou “swtches”. Conclui-se, assim, que não se trata de um jogo de azar, mas de um jogo em que o apostador é fraudado.
Diante de tais ponderações, a Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, através do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, publicou o Aviso nº343/01, no Diário Oficial do Estado de 13 de junho de 2001, orientando os Promotores de Justiça Criminal do Estado a requisitar inquérito policial, a partir da remessa de termo circunstanciado de ocorrência policial que trate da apreensão de máquinas “caça-níqueis”, visando possibilitar a investigação e a elaboração de laudo pericial complementar, para fins de caracterização de crime contra a economia popular, de competência da justiça estadual, sugerindo ainda a seguinte quesitação, elaborada a partir de estudos conjuntos realizados por Promotores de Justiça da capital e do interior e Peritos do Instituto de Criminalística de Bragança Paulista:
Recomenda-se, para fins de eventual caracterização de crime contra a economia popular (art.2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51), a elaboração dos seguintes quesitos:
a) Qual a origem de fabricação da máquina?
b) Qual o modelo ou marca da máquina?
c) Os seus componentes eletrônicos têm a mesma origem (nacionalidade e fabricante)? Se negativo, onde e por quem foram fabricados? Qual a origem do país fabricante das placas ou CPUs?
d) Há identificação do fabricante, através de lacre fixado na máquina? Este lacre apresenta-se íntegro ou violado? Este lacre poderia ter sido substituído por outro não original?
e) A máquina conta com nota fiscal e/ou guia de importação?
f) Os dados específicos constantes na nota fiscal e/ou guia de importação são coincidentes com os apresentados na máquina examinada? E os componentes eletrônicos (placas e CPUs) são coincidentes com as informações da nota fiscal e/ou guia de importação?
g) A CPU, as placas e/ou componentes de programação (memória) constantes da máquina permitem suas substituições? Estas substituições, se ocorridas, deixam vestígios?
h) É possível efetuar rastreabilidade – aferição entre os componentes eletrônicos (placas e memória) e o equipamento em que foram montados – desses componentes?
i) Na máquina em questão, houve substituição de peça?
j) A máquina possui dispositivo do tipo micro-chave ou “switches”?
k) Essas micro-chaves ou ” switches” são acionadas manualmente?
l) De que modo se dá esse acionamento manual?
m) Esse acionamento manual permite alterar a programação, modificando a probabilidade de ganho do jogo – o pagamento -, tornando a máquina mais difícil ou mais fácil para o jogador?
n) Qual a porcentagem de pagamento da máquina examinada?
o) Diante do exame realizado, o resultado do jogo (vitória ou não do jogador), depende exclusivamente da habilidade ou da sorte?
p) Esse resultado pode ser manipulado pelo acionamento das micro-chaves ou “switches”?
q) A máquina possui laudo de aprovação inicial?
r) Esse laudo de aprovação inicial possui os detalhes técnicos mencionados nos itens anteriores? E a conclusão desse laudo é objetiva em concluir pela caracterização da máquina como jogo de azar?
s) Diante do examinado, na opinião dos srs. Peritos, a máquina caracteriza jogo de azar?
Nada mais é preciso acrescentar, portanto, para ter-se como certo que se trata de máquinas que arrebata, daqueles que pensam tentar a sorte, ganhos em benefício da minoria que as explora ou as coloca à disposição do público, o que certamente é fato típico e antijurídico que se insere perfeitamente no inciso penal enfocado, caracterizando crime contra a economia popular.

CONCLUSÕES:

As máquinas eletrônicas programáveis (caça-níqueis, vídeo-bingo, etc), escondem estreita ligação com a Máfia italiana e espanhola, que se servem da ausência de controle dos rendimentos auferidos com o jogo para a “lavagem de dinheiro” proveniente de graves condutas delituosas, inclusive o narcotráfico, razão pela qual a reação estatal a crimes gravíssimos também passa pela repressão cotidiana à exploração das máquinas “caça-níqueis”;

A Lei nº9.615, de 23 de março de 1998, denominada “Lei Pelé”, tipificou a exploração das máquinas eletrônicas programáveis nas salas de bingo (art.73), cuja apuração é de competência da Justiça Federal. Nada previu, entretanto, quando tal exploração ocorrer fora dos estabelecimentos destinados à exploração do bingo, vale dizer, em bares ou similares;

Estudos realizados pelo Instituto de Criminalística de Bragança Paulista-SP informam que todas as máquinas eletrônicas de jogo, desde as mais simples até as mais sofisticadas, são dotadas de “switches” (micro-chaves), através das quais se altera o comportamento das máquinas, de acordo com a vontade de quem a explora. Através destes ajustes, pode-se escolher a porcentagem de pagamento ao jogador ou até quanto o apostador vai poder ganhar com o jogo;

Deste modo, as máquinas “caça-níqueis” guardam muita semelhança com as antigas máquinas de “vídeo-poker”. Não se confundem com o jogo de azar previsto no art.50 da Lei das Contravenções Penais. Trata-se, na verdade, de jogo viciado, de estelionato coletivo, a ser capitulado como crime contra a economia popular, nos termos do art.2º, inciso IX, da Lei nº1.521/51;

Assim, a partir da remessa de termo circunstanciado de ocorrência policial que tratar da apreensão de máquinas “caça-níqueis”, deve-se requisitar a instauração de inquérito policial para se viabilizar a investigação e a elaboração de laudo de exame pericial complementar a partir da quesitação sugerida, para fins de caracterização de crime contra a economia popular.

[5][1] JUTACRIM 3/208 e 4/061; RJDTACRIM 19/077.
[6][2] OLIVEIRA, Elias, in “Crime Contra a Economia Popular”, Ed. Freitas Bastos, 1952, p.94/5.
[7][3] RJTACRIM 4/072, 4/196, 8/227, 25/94.
[8][4] PIMENTEL, Manoel Pedro, “Vídeo-Poker: Lícito ou ilícito”, in Repertório IOB de Jurisprudência Rj3, nº12/87, 2ª, setembro, 153/2.