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Por que o Brasil tolera o abuso do álcool?

20/06/2005

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Estereótipos sobre nações sempre existiram. Somos todos capazes de dissertar sobre a inteligência de um povo, a burrice de outro e a desonestidade de um terceiro. Sabemos (!) qual é o povo que tem horror a banhos, aquele que é chegado em dinheiro, o preguiçoso, o musical, o falso e por aí afora.
Também nós, brasileiros, temos sido vítimas dessa visão preconceituosa que, a partir de alguns exemplos, reais ou não, lança um olhar a todo o conjunto de habitantes de um país e a seus descendentes até a enésima geração.

O que está acontecendo com bebidas alcoólicas é um escândalo nacional, a respeito do qual tudo se sabe e pouco se faz

Costumava-se perceber num suposto "ser brasileiro" uma certa leviandade, uma condescendência excessiva para com os outros e para consigo mesmo. Dizia-se até que a nossa era uma nação extremamente tolerante, quase displicente, resistente à aplicação de leis e de regulamentos.
Essa falta de disciplina -e mesmo de caráter- era freqüentemente apresentada como uma rara virtude nacional, exaltada em músicas, piadas e filmes que mostravam o país como sendo um lugar de mulheres fáceis, carnaval permanente, congraçamento racial e social nas ruas e apenas uma grande preocupação: o futebol.
Embora o Brasil ainda seja apresentado e representado dessa forma -principalmente para a caipirada americana e européia que busca o turismo sexual, a floresta amazônica na avenida Paulista e desfiles carnavalescos no mês de julho-, para as pessoas um pouco mais informadas o país deixou de ser percebido como um pitoresco "perdedor do terceiro mundo".
Uma economia tocada com responsabilidade, brasileiros trabalhando duramente aqui, nos EUA, no Japão e em muitos países da Europa e produtos de qualidade exportados (até uma orquestra sinfônica!) têm sido importantes para essa mudança de olhar. O mundo parece já aceitar o fato de que este é um país sério.
Sucesso lá fora, fracasso aqui. Diante de alguns problemas que nos afetam grandemente, ficamos imobilizados, como se nos faltasse maturidade para solucioná-los. Se não fosse isso, o Brasil já teria encarado com um pouco mais de seriedade questões importantes como aquelas relacionadas com o consumo abusivo do álcool.
O que está acontecendo com bebidas alcoólicas é um escândalo nacional, a respeito do qual tudo se sabe e pouco se faz. Dados sobre o crescente problema de uso indevido do álcool no país e suas devastadoras conseqüências, incluindo violência, acidentes de trânsito, faltas na escola, acidentes de trabalho, além de um enorme prejuízo econômico, são conhecidos há anos.
Também há anos vemos a idade média do início do consumo de álcool diminuir, a diferença de uso entre os sexos estreitar-se (as meninas aumentando o uso, não os meninos reduzindo) e as estratégias de marketing do produto promoverem uma verdadeira invasão dos nossos meios de comunicação. E tudo isso acontecendo enquanto um mapa da Organização Mundial de Saúde identifica os brasileiros entre os que teriam mais anos de vida afetados por incapacidade devido ao abuso do álcool…
Não se trata, é claro, de proibir seu uso nem de estabelecer cruzadas moralistas. Trata-se, sim, de combater os efeitos que o abuso do álcool tem causado sobre a economia, a sociedade e a auto-estima dos brasileiros.
Há, na literatura científica, evidências sólidas quanto às melhores medidas a tomar. Inúmeros estudos e experiências no mundo todo indicam que as estratégias mais eficazes são as que lidam de maneira ampla com o problema.
Em primeiro lugar, estão os fatores de acesso, que devem incluir o aumento de preço do produto (maiores impostos, que poderiam ser direcionados à prevenção), restrição dos locais de venda, limites nos horários de venda (há experiências bem sucedidas até na Grande São Paulo), proibição (para valer) de venda aos menores.
Em acréscimo, estratégias relacionadas à informação, como a proibição de propaganda e recursos como a aplicação ampla e constante de bafômetro para evitar que as pessoas dirijam alcoolizadas. Essas estratégias, extremamente efetivas, têm custo relativamente baixo (principalmente quando comparadas aos prejuízos econômicos causados pelo uso nocivo de álcool), mas dependem de vontade política e fiscalização.
Mas, e voltamos ao começo, por que introduzir medidas restritivas em povo tão bonachão e simpático? É possível imaginar que, além do intenso lobby da indústria do álcool, a visão nacional errônea e ultrapassada de um brasileiro imaturo e incapaz de lidar com limites e com fiscalização contribua para esse quadro.
Ilana Pinsky, 37, psicoterapeuta, doutora pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é especialista em dependência de álcool e outras drogas e organizadora do livro "Adolescência e Drogas". Jaime Pinsky, 65, historiador e diretor da Editora Contexto, é professor titular aposentado da Unicamp e organizador dos livros "História da Cidadania" e "Faces do Fanatismo".Folha de SP