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Jogadores vivem período de abstinência.

15/03/2004

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BLUMENAU – Os políticos italianos que viveram entre os séculos 13 e 14 provavelmente não imaginavam que 800 anos mais tarde um país se efervesceria com uma prática inventada nas antigas salas da Câmara e do Senado europeu. Freqüentadores aficionados por bingos e jogos de videoloteria sofrem e falam até em depressão ocasionada pelos mais de 20 dias que as casas de jogos de azar seguem a portas fechadas por decisão do governo.
O jogo que no mês passado virou assunto em todas as esquinas brasileiras brotou de um sistema de substituição de membros nos cargos políticos da Itália de 1400. Dali improvisou-se uma brincadeira lúdica que no Século 14 ganhou adeptos em outros países e começou a ser brindado com prêmios. Hoje, o bingo envolve dinheiro, muito dinheiro. E é justamente isso que atrai Rosa*. Aos 52 anos e sem poder trabalhar por causa de um problema na mão, ia praticamente todas as tardes a uma casa de jogos em Blumenau. "Fazer um jogo em casa não tem graça. Não tem dinheiro, que dá mais prazer de ganhar".
O marido não gosta do jogo, mas também não se importa que Rosa passe as tardes fora. "Ele só reclama quando eu gasto demais". Mas desde o dia 20 de fevereiro as três casas de jogos de Blumenau e também todos os estabelecimentos do ramo espalhados pela região estão fechados. O governo federal tem mais uma semana – data que expira a validade da medida provisória (MP) editada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva – para decidir o que fazer com os bingos e máquinas caça-níqueis.
Por enquanto, o Congresso Nacional não deu sinais de votação da MP. Se não for votada, a medida deve ser reeditada.
Nesse caso, a jogatina continua proibida. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, vem reiterando que o governo não deve ceder na decisão de manter os bingos fechados.
Amantes do jogo como Rosa torcem para que a velha legislação volte a vigorar. "Só não pirei ainda porque estou na expectativa", revela a mulher que não hesita em mostrar predileção pelo jogo nas máquinas.
Santa Catarina movimentava R$ 2,3 milhõesOs jogos de diversão eletrônica movimentam a economia e engordam a receita de estados e municípios. Em Santa Catarina, a Codesc, administradora das atividades relacionadas às modalidades lotéricas e jogos de diversão eletrônica, arrecada R$ 2,3 milhões por mês com as 30 casas de bingo e 130 de videoloterias espalhadas pelas cidades. Os impostos são resultado do lucro que os empresários têm com a movimentação nas casas.
O casal de classe média Ilúzia Andrade, 67, e Lírio Vitória, 63, é exemplo de assíduos freqüentadores. "Sexta, sábado e domingo era sagrado. Durante a semana ia quando estava estressada", conta Ilúzia. O casal ia por volta das 17h, mas não tinha hora para voltar. "É a única diversão para os aposentados", concordam os aposentados. Dona Ilúzia pensa estar entrando em depressão por causa da ociosidade e chega a se emocionar ao falar da expectativa de reabertura. "A gente estava lá no bingo no dia que fechou. Fomos os últimos a sair", lembra o casal.
Freqüentadores concordam que os mais velhos são o principal público. Mas Sintia Denise Ern mostra que jovens também são atraídos pelo fascínio das máquinas e ambiente das casas. A dona-de-casa conversou com a reportagem do Santa na tarde de quinta-feira. "Essa hora certamente eu estaria lá", prevê a mulher de 34 anos que desde os 26 aposta nas cartelas. O segredo para evitar o vício, na opinião de Sintia, é ter consciência de que "bingo não é lugar para ganhar dinheiro. Você vai para se divertir e corre o risco de ganhar". Ela não revelou quanto gasta, mas garante que em oito anos nunca passou dos limites. "O governo tem tanta coisa mais importante para tratar e fica se preocupando com algo que é tão bom para o povo", conclui.
Entidade ajuda quem se perdeu no vícioAlheios às discussões políticas e legais em torno do tema estão os 15 membros dos Jogadores Anônimos (JA) de Blumenau. A irmandade, como os membros gostam de se referir, acolhe as pessoas que jogam mas querem deixar o hábito. Ou vício. Desde que as casas de jogos de azar fecharam, há 22 dias, não apareceram novos visitantes. Membro fundadora do JA na cidade, Aline* avalia que o fatos de os locais de jogos estarem fechados representa "uma proteção para os compulsivos". Mesmo assim, ela deixa claro, os encontros do grupo se mantêm com ou sem bingos espalhados pela cidade.
Aline não opina em nome da entidade. Diz que a irmandade não faz apologia ao fechamento dos bingos. Mas pessoalmente se posiciona de forma crítica à situação que vê em torno das justificativas de empresários, trabalhadores e freqüentadores para a reabertura das casas. Na região do Vale, 734 empregos eram sustentados pela jogatina. "Mas há o outro lado, muito mais prejudicial à sociedade", diz Aline. "São as pessoas que fecham suas empresas por causa de dívidas de jogo, demitem funcionários ou mesmo são demitidas do emprego por estarem doentes por jogo".
Fim de apostas altas como passatempo.
Anselmo* não se interessava por bingo. Achava que aquilo devia ser enfadonho. Uma amiga insistiu e o levou. Foi no final de 1999. Descobriu que a atividade deixara de ser um passatempo quando começou a fazer apostas altas. "Um dia eu ganhei R$ 5 mil, aí achei que todos os meus problemas com jogo estavam resolvidos". Mas o saldo foi negativo. Em quatro anos, ele acredita ter perdido R$ 50 mil.
Até outubro o homem divorciado de 43 anos jogou quase todos os dias. Nesse mês ele soube, por meio de uma reportagem do Santa que tratava do projeto de lei que pedia pela proibição da exploração das máquinas de videoloteria na cidade, que funcionava na cidade um grupo de Jogadores Anônimos. "Fui algumas vezes, mas tive recaída. Não tive vergonha de voltar". Hoje ele é tesoureiro do grupo.
"Não estou ligado com o fechamento dos bingos porque me sinto protegido". Anselmo demonstra tranqüilidade ao dizer isso, mas não se envergonha em admitir que "mesmo depois do JA eu evito passar em frente aos bingos e procuro andar com pouco dinheiro".
*Os nomes são fictícios para  preservar a identidade  dos entrevistados
Jornal de Santa Catarina – Ana Paula Bandeira