Home Especial Gilson Dipp – Lava-Jato de dinheiro.
< Voltar

Gilson Dipp – Lava-Jato de dinheiro.

21/10/2004

Compartilhe

Sempre que encontra os colegas nos corredores do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Gilson Dipp ouve a mesma piada: ”E aí, ministro, anda lavando muito?”. A resposta também não varia: ”Não tanto quanto eu queria”. A brincadeira é uma referência ao tema preferido do ministro, a lavagem de dinheiro. Num espaço de dois anos, desde que presidiu uma comissão da Justiça Federal que analisava o assunto, Dipp virou um dos maiores especialistas em combate à lavagem de dinheiro do país. É convidado para palestras, congressos e seminários em todo o mundo. Coordenada por ele, a Justiça Federal criou varas especializadas para julgar processos sobre lavagem de dinheiro e crimes financeiros. Em entrevista a ÉPOCA, ele fala das estratégias de combate ao crime e de como o Brasil tornou-se um grande centro de lavagem de dinheiro da corrupção e do narcotráfico.
ÉPOCA – Quanto se lava de dinheiro no Brasil a cada ano?
Gilson Dipp –
Não há dados confiáveis. Fala-se em R$ 5 bilhões, R$ 6 bilhões. O que se tem de mais concreto é que o dinheiro lavado por ano no mundo atinge um quarto da economia do planeta. Agora, com as varas especializadas, é que começamos a produzir estatísticas. Mas certamente a movimentação é grande.
ÉPOCA – Por que se lava tanto dinheiro no Brasil?
Dipp –
Por vários fatores. Até meados dos anos 90, o Brasil não era um país propício à lavagem de dinheiro por causa da inflação alta. Era uma barreira quase natural. Assim como as pessoas do mercado formal não aplicavam dinheiro no país por causa da inflação, lavar dinheiro no Brasil também não valia a pena. No dia seguinte, o dinheiro já estaria desvalorizado. Com a abertura econômica a partir do governo Collor e com a relativa estabilização conseguida com o Plano Real, o Brasil virou um país propenso à lavagem. O desenvolvimento de um sistema financeiro sofisticado também ajudou. Nós temos diversos sistemas cambiais legais no Brasil, e isso facilita o trabalho dos doleiros. Para cada tipo de investimento há uma brecha. É um supermercado de produtos financeiros, o que dificulta a fiscalização. Outro problema é a nossa economia informal, que dá margem a formas mais precárias de lavagem.
ÉPOCA – Por que o sistema financeiro é tão vulnerável?
Dipp –
Por permitir inúmeras transações sofisticadas. O Banco Central está fazendo uma blindagem, e a lavagem por meio do sistema financeiro vem diminuindo. Um exemplo são as contas CC5 (exclusivas para não-residentes no Brasil), utilizadas de forma ilegal. Hoje, o monitoramento dessas contas é muito grande, tanto que o movimento vem caindo sensivelmente. Então, a lavagem de dinheiro parte para outros tipos de movimentação. A pessoa que quer lavar dinheiro recorre a um doleiro, que usa a chamada conta-ônibus, uma espécie de conta de compensação dos lavadores internacionais. Dessa conta vai para outra, do doleiro, e só então segue para um paraíso fiscal. Quando o cliente precisa do dinheiro, pede ao próprio doleiro. Para se descobrir isso, só quebrando sigilo ou com escuta. Hoje, as táticas de lavagem de dinheiro mudam conforme avançam as blindagens feitas pelos governos. Por isso que eu digo que o método mais eficaz de lavagem de dinheiro é aquele que nós ainda não conhecemos.
ÉPOCA – Qual é a origem do dinheiro lavado no Brasil?
Dipp –
Em grande parte da corrupção. A maioria desse dinheiro vem dos crimes contra a administração pública. O caso das contas CC5 demonstra isso. Outros crimes que levam à lavagem de dinheiro, mas que não estão na lei brasileira, são os de sonegação fiscal. Nessa operação Farol da Colina (que prendeu doleiros em todo o país), nós sabemos que boa parte do dinheiro provém do caixa dois de grandes empresas e corporações. O Ministério da Justiça quer mudar isso. Há disposição para tipificar como crime antecedente todo grande delito que envolva grandes quantias de dinheiro.
ÉPOCA – Então as empresas que forem flagradas na investigação do Banestado com caixa dois no exterior não poderão ser processadas por lavagem de dinheiro?
Dipp –
As remessas não poderão ser tipificadas como lavagem de dinheiro porque o dinheiro ilícito é proveniente de um crime que não está descrito na lei. Por isso que está se tentando avançar na legislação. Nós estamos direcionando nossas baterias para os crimes contra o patrimônio público. Hoje, a pena para a adulteração de um chassi de automóvel é mais grave que a de lavagem de dinheiro. A pena para o crime de furto qualificado é maior que a pena para o crime de sonegação fiscal. A lavagem de dinheiro é a espinha dorsal dos atos praticados por todas as facções criminosas. O dinheiro só terá uso se for devidamente reciclado, afastando-se de suas origens ilícitas.

”As ONGs são muito utilizadas (para a lavagem de dinheiro). Há também as igrejas de fachada, os bingos, as transações imobiliárias, a criação de avestruzes, de gado, os bilhetes de loterias…”


ÉPOCA – Quais as táticas de lavagem mais recentes?
Dipp –
São as mais diversas. As ONGs, por exemplo, são muito utilizadas porque não são obrigadas a ter registro no Banco Central. Há também as chamadas igrejas de fachada, de onde se tem notícia de grandes remessas para o exterior. Tudo que for propício à movimentação de dinheiro em espécie com maior número de pessoas anônimas torna fácil a lavagem. É o caso dos bingos. Há também as transações imobiliárias, a criação de avestruzes, de gado, os bilhetes de loterias. Os lavadores sempre são criativos. Também apelam para restaurantes, compra de apartamentos de luxo no Nordeste, hotéis.
ÉPOCA – Como se lava dinheiro com gado ou imóveis?
Dipp –
As formas são as mais variadas, mas geralmente se costuma supervalorizar o patrimônio. Se uma pessoa está vendendo um imóvel por R$ 500 mil, quem quer lavar dinheiro pode oferecer, na escritura, R$ 100 mil. Por baixo do pano, paga os outros R$ 400 mil. Depois, revende o imóvel pelo valor. Pronto: o dinheiro está limpo.
ÉPOCA – Como é possível fiscalizar tudo isso?
Dipp –
A primeira grande reação ao problema veio com a criação de uma comissão no Conselho de Justiça Federal, em 2002. Ela reuniu todos os envolvidos na fiscalização, na inteligência, na investigação criminal e no processamento e julgamento dos crimes de lavagem. Foi acertada uma série de medidas que desembocaram na Estratégia Nacional de Lavagem de Dinheiro, uma ampliação da comissão inicial. Chegamos à conclusão de que, além de aperfeiçoamento das leis, precisávamos ter uma ampla cooperação interna entre os órgãos envolvidos no assunto, do Ministério Público ao Judiciário. Esse foi o grande mote. Também é preciso uma ampla cooperação internacional, de acordos bilaterais, para agilizar os processos.
ÉPOCA – Como se dá essa integração na prática?
Dipp –
A principal medida foi a criação das varas especiais. Lá, a Polícia Federal faz perícias técnicas, interceptações telefônicas e trabalha com a delação premiada. Já há pedidos até de infiltração de agentes nas organizações criminosas. Há uma especialização nesses Juizados. Quase todas as capitais já têm um. Lá são julgados todos os inquéritos que digam respeito a crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro. Isso possibilita que o juiz, o MP e a polícia se especializem. Essas varas têm apoio técnico informal do Banco Central. Alguns assuntos altamente técnicos são analisados hoje por esses juízes, algo impensável há apenas um ano.
ÉPOCA – Essa cooperação pode ser abalada caso o Ministério Público perca parte dos poderes investigativos?
Dipp –
Não tenho dúvidas. Nesses crimes complexos, de alta tecnologia, de corrupção contra a administração, se o MP não puder continuar à frente das investigações, certamente esses casos não serão desvendados. Isso não é apenas manifestação minha, mas dos juízes que integram as varas criminais de lavagem de dinheiro. É bem verdade que o MP tem de ter alguma regulação. Já há consenso de que não pode haver investigações sem prazo, sem direito à ampla defesa.
ÉPOCA – O trabalho das varas especiais já trouxe resultado?
Dipp –
O número de inquéritos vem crescendo exponencialmente. São inquéritos mais rápidos, eficazes, assim como o julgamento. É também uma garantia para o acusado, porque ele sabe que está nas mãos de quem entende do assunto. Recentemente, participei do processo de avaliação do Brasil no Grupo de Combate à Lavagem de Dinheiro (Gafi, que reúne os 40 países mais ricos do mundo), em Paris. Um dos pontos positivos citados foi a criação dessas varas. O procurador antimáfia da Itália, Piero Luigi Vigna, quer conhecer esse sistema, inédito no mundo.
ÉPOCA – Mas, se o acusado tiver foro privilegiado, o processo vai parar nos tribunais superiores, deixando de fora os peixes graúdos. Isso não esvazia um pouco a eficácia das varas?
Dipp –
Nem sempre. Uma sentença recente, por exemplo, condenou 25 ex-diretores do Banestado por causa das contas CC5. Mas se o indiciado tiver foro privilegiado, não tem jeito. O processo vai para o foro competente.
ÉPOCA – A força-tarefa que investiga as remessas CC5 recuperou apenas US$ 100 milhões. É possível avançar na recuperação do dinheiro?
Dipp –
Essa é outra dificuldade que enfrentamos. Há falta de estatística. Somente agora criamos uma central de informações sobre processos de lavagem. A recuperação, especialmente se os recursos estiverem no exterior, depende da cooperação internacional. Como temos poucos acordos bilaterais, ainda é pequena a quantia recuperada. O Ministério da Justiça criou um departamento de recuperação de ativos, o que é um grande passo. Realmente, o que não falta são casos comprovados em que o dinheiro não é recuperado. É o que ocorre no Banestado ou em casos como o da Jorgina de Freitas, fraudadora do INSS, ou da construção do TRT de São Paulo. Chega-se aos culpados, mas a recuperação dos ativos ainda é muito pequena. Hoje, a preocupação mundial, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, é com o financiamento do terrorismo. Quando se trata de obter cooperação em relação ao terrorismo, as coisas andam mais rápido. Mas, quando se trata de recuperar dinheiro proveniente de crimes de corrupção e de superfaturamento de obras, a cooperação não é tão rápida assim.
ÉPOCA – Até porque os paraísos fiscais dependem dessas divisas…
Dipp –
Claro. O Uruguai, por exemplo, vive de aplicações do sistema financeiro internacional. E não coopera com o Brasil. Mas o governo tem acelerado a assinatura de acordos internacionais para melhorar isso. O Ministério da Justiça também montou um grupo de trabalho para preparar uma lei que fundamente com mais transparência esses acordos bilaterais.
ÉPOCA – A região da tríplice fronteira, em Foz do Iguaçu, é uma preocupação dos Estados Unidos. É paranóia dos americanos ou se lava dinheiro do terrorismo lá?
Dipp –
Esse é um ponto essencial. A maior preocupação do Gafi é com o terrorismo. Então, há uma pressão sobre o Brasil para que se tenha certeza de que aqui não há terrorismo. Também querem que o país tipifique o terrorismo como crime. Sabemos que houve duas grandes migrações libanesas para a região de Foz de Iguaçu. Essas pessoas vieram do sul do Líbano, da fronteira entre Síria e Israel. São cerca de 20 mil pessoas. Sabe-se que elas remetem dinheiro para suas famílias e para o Hezbollah, que é um partido político. Esse partido recebe muito dinheiro. Mas, se o dinheiro é obtido de forma lícita e é enviado de forma lícita, o governo brasileiro não pode fazer nada. O que acontece com o dinheiro lá fora não está ao alcance do Brasil. Mas os Estados Unidos continuam implicando com isso. Nenhum órgão de inteligência detectou problemas. Há desconfiança sobre um ou dois suspeitos, nada além disso.
ÉPOCA – O relator da CPI do Banestado, José Mentor (PT-SP), foi acusado de criar um banco de dados extra-oficial sobre transações bancárias. A CPI extrapolou suas funções?
Dipp –
Na verdade, a CPI do Banestado não apurou nada diferente do que consta nos inquéritos sobre o caso. As CPIs têm papel importante na elucidação de crimes que abalam a sociedade, mas não podem extrapolar as funções constitucionais e virar uma espécie de polícia, com banco de dados particular. Esses dados têm de ser repassados formal e adequadamente para o MP e a PF. A CPI não pode ter o próprio serviço de inteligência e banco de dados. O que se lê nos jornais preocupa o Poder Judiciário.

Revista Época – Diego Escosteguy